sábado, 6 de fevereiro de 2010

Dona Naninha e o Beija-flor

Dona Naninha acordou mais cedo que o dia, abriu suas janelas e portas e pôde perceber que assim como no mundo lá fora em seu peito a noite ainda reinava. Aqueceu o café e sentou-se próximo à porta da cozinha, seu lugar de preferência desde menina. Solitária, a velha fazia aquele rito todas as manhãs, mas naquele momento algo lhe passou zunindo nos ouvidos, dando asas pras lembranças que chegavam com o caminhar do vento primeiro de cada amanhecer. Sua memória acordara brilhosa, tal qual os raios do sol que vinham matar a saudade daqueles que temem a escuridão da noite. Dona Naninha fechou os olhos e sorriu, como se mergulhasse dentro de si. No espaço tempo foi até sua mocidade, seus vestidos rendados, seus laços coloridos, seus seios fartos de vida, de alegria, seus quadris sempre desejados pelos rapazes da vizinhança. Era moça de sorriso infantil, de formosura madura e efervescente molejo. Amava a vida e suas descobertas, jamais deixara suas tristezas emudecerem seu coração. Viajou anos pela memória e novamente pintou aquele sorriso, mas agora no rosto da amarga velha que tornou-se. Abriu os olhos buscando seu tempo real e observou o zunido novamente, mas agora fantasiado de beija-flor em sua janela. Observou a beleza do pássaro que rasga o ar com suas asas e faz parar o tempo em seu voar. Não conteve a precipitação de uma lágrima, havia enchido seu peito com amor aos detalhes, aos olhares singelos que a vida pincela em torno de cada um, coisa que há muito havia se esquecido. Por que esquecera? Dizia a Velha, que recortou os bordados de amor da sua memória, pois Deus havia lhe tomado a linha e agulha que lhe permitiam a renda criar. Dona Naninha ainda de casamento prematuro, perdeu seu amado, não para a morte, mas para a vida de uma outra família. Ofertada a solidão fez-se então concubina do silencio e dos jantares de um prato só. Manteve por décadas o lado direito da cama arrumado, as fotos foram se amarelando na cabeceira, no passo em que sua vida amarelava-se também. Tornou amarga suas palavras e coração, nunca mais deitou em outras camas, nunca mais abraçou novos abraços. Naninha decidiu ser porto de duas opções, a morte, ou seu amado. E assim foi, sua juventude deu lugar as rugas, seu sonhos partiram sem volta, seus sorrisos banguelos ficaram, a voz doce que cantava delírios e fazia ninar o pranto dos vizinhos nunca mais foi ouvida. Fechou-se para o mundo, assim como o mundo fechara-se para ela. Mas naquela manhã, logo naquela manhã como tantas outras que ela havia passado, algo mudara. Observava o pássaro a medida que suas lágrimas agora despencavam, a miudeza de corpo o esplendor que ele trazia em cada beijo dado nas tulipas, nas azaleias, nas rosas, nos lírios. Trazia junto com o voar a elegância de quem compartilha amores, por saber da dependência de um dia retornar e beijá-las novamente. Voava delicadamente de flor em flor cortejava um novo rasante. Naninha já em delírio observava tudo aquilo, seu peito ia se enchendo, seu arrependimento também. Percebeu que mesmo voando só, era possível para a ave se alimentar, viver, redescobrir sabores. Percebeu que assim como o beija-flor o vento também voa solitário, e nunca deixa de brincar com vestidos, cabelos, ou de guiar nuvens para onde a terra pede água. Percebeu que mesmo sua solidão sendo milenar nunca estavam estes só. Seu peito foi se enchendo de pranto em misto de tranquilidade e alegria. Percebeu sua injustiça com Deus, percebeu seu erro com ela mesma. Havia passado a vida só e amargurando-se por ter batido asas apenas uma vez. Naquele momento o sol já fazia sua vida presente em todos os cantos da casa, da rua, do quintal. Caiu o copo da mão de Naninha enquanto seu corpo repousava-se bruscamente na velha cadeira. O coração já no compasso das asas da ave, parecia querer partir-lhe o peito, foi então que Naninha abandonou tudo aquilo, criou asas novamente, decidiu que ainda era tempo de voar, decidiu que seria morada de amor eterno as aves de bico agulhado, voou junto daquele seu segundo amor e nunca mais foi vista.
Alguns dizem que Naninha nunca existiu, mas verdade é que desde então toda vez nasce um botão de rosa, toda vez que um novo coração bate, Naninha está lá regando mel nos lábios, sendo mãe de relacionamentos, sendo crença pra todo homem ou mulher que no mundo se perde. Passou-se muito tempo desde que Naninha partiu com o beija-flor, muitas pessoas se esqueceram dela, outras do seu nome, ainda criam muitas lendas sobre, em todo vilarejo ou cidade, em toda esquina ouve-se falar de Dona Naninha, que com o passar do tempo, pros homens de passado ainda curto ou aqueles de vivência amadurecida e cansada tornou-se a ser conhecida apenas como Esperança. Sua história foi esquecida até mesmo da sua memória, mas a verdade é que Dona Naninha ou Esperança nunca mais deixou de voar, nunca mais viveu sozinha.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Meus carmas, sua cama, minhas quimeras....

Queria saber das minhas quimeras
que desnudas inundam meu peito vazio
São lembraças pisadas com cuidado
um caminho de amores e memórias
Karmas e armas me matando ao poucos
em suas camas, em saudade dos seus lençóis
um tiro, um sorriso, uns milimetros a mais distante
Queria saber dessas quimeras
talvez um pouco mais e entender a mim
Se me acham alvo de ser achado fácil
ou se há chão onde possamos pisar partilhas
Queria saber acima de tudo
se sou cria ou criador dessas meninas
se sou criatura de perda constante
náu derivando
folha ao gosto do vento
e se são elas portos navegantes
ancoras
velas
caçadoras...
Cada vez mais distantes
cada vez mais flutuantes
cada vez mais amantes
cada vez mais assassinas
e eu
cada vez mais afogado
no fel
no meu amargo querer vivência
no meu infinito de desculpas
por vive-las demasiado
apenas em memória...